Quando eu era criança, uma frase que ouvi na escola me deixou inquieto por dias:
“Hoje vai chover canivete.”
Aquilo me assustou. Fiquei esperando a chuva cair, com medo de me machucar. O mais estranho era que ninguém parecia se importar. Ninguém levou guarda-chuva. Ninguém fugiu do céu. Só eu, parado, tentando entender como as pessoas conseguiam rir de algo tão perigoso.
Viver com autismo é isso: as palavras são reais. Não vêm com entrelinhas, nem figuras de linguagem. O pensamento literal não é erro. É o modo como a gente interpreta o mundo, com sinceridade absoluta.
Vou explicar melhor esta literalidade, com a história de Benício Pereira, personagem fictício, mas os fatos aconteceram comigo.
Capítulo 1 – O Mapa Invisível
Benício Pereira tinha 9 anos e um mundo só dele, desses que não cabem na fala comum, mas se revelam nos gestos, nos olhos atentos e no silêncio cheio de sentidos. Vivia desenhando mapas invisíveis com os pés, andando pelas ruas do bairro como um explorador que não precisava de bússola, só de tempo e escuta.
Era um sábado quente, daqueles em que o sol parece esticar os pensamentos. Benício acordou com vontade de descobrir. Não exatamente descobrir algo novo, mas sentir outra vez o que já conhecia: os cantos das calçadas, os muros rachados, as árvores que ele nomeava com nomes próprios, "a dona Mangueira", "o senhor Oitizeiro". Era como se o bairro respirasse junto com ele.
Saltou o portão de casa com a agilidade de quem já treinou isso muitas vezes. Sua casa era seu refúgio, mas o lado de fora era seu laboratório. Ninguém o viu sair. E ele também não avisou. Não por desobediência, mas porque não sabia como colocar em palavras aquele desejo de andar, só andar, até o mundo fazer sentido de novo.
Depois de algumas esquinas, parou ao ouvir vozes. Risadas. Crianças. Eram três meninos, um pouco mais velhos, brincando com uma bicicleta sem garupa, no terreno de terra ao lado da antiga mercearia. A bicicleta parecia mágica, mesmo estando enferrujada. Um deles pilotava, o outro se equilibrava em pé sobre a roda traseira, usando como apoio apenas o parafuso onde a garupa deveria estar.
Benício observou por minutos. Os olhos arregalados. O coração calmo. Aquela imagem era estranha e linda. Aproximou-se devagar, sem saber se podia fazer parte.
— Posso tentar? perguntou, com voz quase sussurrada.
Os meninos se entreolharam. Guilherme, o que pilotava, deu de ombros.
— Pode. Mas segura firme, hein.
Benício subiu na bicicleta com cuidado. Sentiu o vento bater no rosto. Era como se estivesse voando dentro de um sonho de movimento. A terra sob as rodas, os galhos balançando, tudo parecia em câmera lenta. Até que Guilherme resolveu acelerar.
— Vamos pular o morrinho! gritou o piloto.
Benício nem teve tempo de pensar. Quando deram o salto, o parafuso traseiro encontrou sua perna em cheio. O rasgo foi seco, dolorido, silencioso. O sangue escorreu antes mesmo de ele entender o que tinha acontecido.
Ele desceu, olhou para a ferida aberta. Viu o corte, mas não gritou. Não chorou. Só pensou numa coisa:
“Preciso dormir pra melhorar.”
E correu de volta pra casa.
Capítulo 2 – O Rasgo e a Coberta
Benício pulou o portão de volta como se estivesse fugindo de um mundo que o feriu. Entrou em casa sem fazer barulho. Ninguém o viu. Subiu direto para o quarto, puxou a coberta até o pescoço e se deitou de lado, escondendo a perna sangrando como quem tenta apagar uma parte do dia.
Na cabeça dele, dormir era o antídoto. Desde pequeno ouvia:
“Tá doendo? Dorme que passa.”
E era isso que fazia. Sempre funcionava. Então por que agora seria diferente?
O calor do dia era abafado, mas ele permaneceu coberto, imóvel, sentindo o sangue molhar o lençol. O tempo passou devagar. Os sons da casa continuaram como se nada estivesse errado, panela no fogão, TV na sala, passos no corredor. Ninguém desconfiava.
Até que Dona Elza, sua mãe, estranhou o silêncio.
— Benício, tá tudo bem aí? Tá calor, meu filho… por que está com coberta?
Ela entrou no quarto devagar, sentindo que havia algo fora do lugar. Quando puxou a coberta, se deparou com o sangue seco grudado na perna do filho, o corte profundo, o olhar distante dele. Um susto engasgado.
— Meu Deus, o que aconteceu?!
Seu Nélio, o pai, veio correndo. Era um homem prático, direto, mas ao ver o filho daquele jeito, sentiu o coração apertar. Sem muitas perguntas, pegou o menino no colo e correu para o carro. Benício não resistiu, apenas deixou-se levar, como quem ainda acreditava que aquele sono interrompido era só parte do processo de cura.
No caminho até o hospital, ninguém falava. A cidade passava rápida pelas janelas. Benício olhava para o teto do carro, em silêncio, sentindo o peso daquilo que ainda não compreendia:
“Talvez essa dor seja diferente. Talvez não passe só com o sono.”
Capítulo 3 – O Médico e o Mistério
No pronto-socorro, o cheiro de álcool e ansiedade tomou conta do ar. Dr. Marcelo, um homem sério de jaleco branco, atendeu sem muita conversa. Olhou a perna de Benício, franziu a testa e pegou uma bucha grossa e uma solução de limpeza.
— Vai arder, tá? Mas precisa lavar.
Antes que Benício pudesse responder, o médico começou a esfregar a ferida. Sem anestesia. O menino mordeu os lábios. A dor era aguda, rasgava mais do que o corte. Mas ele não gritou. Não pediu para parar. Apenas olhou para o rosto do médico e se perguntou:
“Por que ele não espera eu dormir antes de fazer isso?”
Depois da limpeza veio a agulha. Pontos. Linha costurando pele como se fosse tecido. Benício acompanhava tudo sem piscar. Sua mente cheia de pensamentos que ninguém ouvia:
“Será que os adultos esquecem que dormir cura?
Será que só eu ainda acredito nisso?”
Quando tudo terminou, Dr. Marcelo deu um tapinha leve no ombro dele.
— Foi corajoso, garoto.
Mas Benício não sorriu. Não respondeu. Ainda estava tentando juntar os pedaços do mundo que se rasgaram junto com sua perna.
Na volta pra casa, Seu Nélio dirigia calado. Dona Elza segurava a mão do filho no banco de trás. Benício olhava pela janela. As ruas pareciam as mesmas, mas algo nele havia mudado.
Naquela noite, deitado outra vez sob a coberta, agora limpo, costurado, remendado, Benício pensou baixinho, como se falasse para o próprio corpo:
“Nem toda dor dorme.
Mas mesmo assim, ainda acho que dormir ajuda.”
E fechou os olhos com cuidado. Não para esquecer.
Mas para entender.
Mas Não Era Só Dormir?
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