Era manhã de domingo.
Benício estava na varanda de casa, cercado por cadernos,
folhas soltas e o velho saxofone repousando ao lado, como um cão fiel que já
não precisava latir para ser ouvido.
O concerto havia sido três semanas atrás.
Mas ainda morava nele, como uma música que a gente não
esquece.
Desde então, a vida ganhou novos tons.
O projeto musical foi elogiado pela chefia.
Os pais solicitaram continuidade.
A Secretaria da Educação enviou um ofício elogiando a ação.
E uma escola pública da zona leste ligou perguntando:
“O professor do sax poderia vir contar como é ser
autista?”
Benício quase recusou.
Mas Melina, com sua voz de mel e firmeza de rocha, disse:
— Se você contar, alguém vai se reconhecer.
E se alguém se reconhecer, não vai mais se sentir sozinho.
Ele entendeu.
Melina também estava escrevendo.
Relatórios, como sempre, mas agora também escrevia cartas
aos pais, explicando com palavras doces o que via nas crianças.
“Seu filho não é atrasado. Ele é diferente. E essa
diferença merece ser compreendida, não corrigida.”
Era a mesma escuta que ela teve com Benício.
Agora multiplicada em dezenas de pequenos corações que
caminhavam pelo corredor da escola com fones no ouvido, ouvidos tapados ou
olhares para o teto, cada um com seu universo próprio.
Ela os amava como quem reconhece seus próprios fragmentos em
cada um deles.
Benício também começou a escrever.
No começo, em post-its.
Depois, num caderno velho com a capa escrita: “Vozes que
ninguém ouve”.
Escrevia sobre sua infância. Sobre o dia em que ouviu Melina
pela primeira vez. Sobre o menino que balançava a cabeça e se escondia debaixo
da mesa. Sobre o trem azul. Sobre o som da flauta desafinada de Luna. Sobre o
recital que virou revelação.
Escrevia com pausas. Mas escrevia.
— Isso é um livro, disse Melina.
— É só um caderno, respondeu ele.
— Todo livro começa assim.
Naquela manhã de domingo, ele finalizou uma das páginas com
a seguinte frase:
“Eu sou feito de silêncio.
Mas hoje sei que até o silêncio tem ritmo.
E se escutarem com cuidado, vão me ouvir também.”
Fechou o caderno, respirou fundo, e pegou o saxofone.
Tocou uma nota longa, cheia de ar e sentimento.
Não era mais um som isolado.
Era o começo de uma nova melodia.
Lá dentro, Melina preparava café, sorrindo.
E no quintal, os passarinhos se aproximavam…
…como se quisessem escutar.
Pensamento:
Nem todo som é barulho. Nem todo silêncio é vazio.
Benício me ensinou isso.
Ele não é um herói. Nem um exemplo. Nem um símbolo.
É apenas um homem tentando existir com dignidade num mundo
que corre demais… e escuta de menos.
Ele é como eu. Como muitos de nós.
Autistas que cresceram calados, interpretados errado,
rotulados antes de serem compreendidos.
Gente que não olha nos olhos por medo de ser engolida por
eles.
Gente que fala pouco, mas sente muito.
Gente que se esconde… até encontrar alguém que não precise
forçar a porta para entrar.
Benício encontrou Melina.
Encontrou crianças como ele.
Encontrou coragem onde antes só havia rotina.
E encontrou algo ainda mais precioso: a própria voz.
E talvez essa seja a verdadeira vitória de quem vive no
espectro:
não virar outra pessoa… mas virar quem se é, sem medo.
Essa história não termina aqui. Porque a vida de gente
autista não tem “fim de temporada”.
Tem pausa. Tem recomeço. Tem dias bons e dias em que a luz
não acende por dentro.
Mas agora, sabemos que há música até no silêncio.
E que mesmo as vozes caladas… um dia podem ser ouvidas.
Benício é ficção.
Mas o que ele carrega… sou eu.
E pode ser você também.
Porque, no fundo, todos nós estamos procurando uma coisa só:
Um lugar onde possamos existir sem precisar pedir desculpas
por sermos quem somos.
E se esse lugar ainda não existe…
…então vamos criá-lo.
Com música.
Com respeito.
Com escuta.
E com amor, mesmo que em silêncio.
*História fictícia baseada no perfil psicológico e
acadêmico do autor.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
____
Autor:
Sou Vilmar Francisco de Oliveira. Servidor público na
Prefeitura de Londrina desde 2012, atuo com dedicação silenciosa e
responsabilidade cotidiana. Sou bacharel em Ciências Sociais (UEL) e tenho
especializações em áreas como Gestão Hospitalar, Direito Administrativo,
Sociologia e Administração Pública.
Carrego comigo o autismo como parte da minha identidade,
não como limite, mas como lente única para sentir e transformar o mundo.
Também sou músico instrumentista, autodidata, e escrevo
porque as palavras me ajudam a traduzir o que muitos não veem: os sentidos
profundos de um mundo atípico.
Estar em formação constante não é apenas sobre cursos,
mas sobre aprender a existir com mais verdade, escuta e afeto.
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