Benício chegou quinze minutos antes.
O projeto de música com as crianças começaria às duas da
tarde, na sala multiuso do anexo da repartição. Ele já havia mapeado o caminho
mentalmente: da sua mesa até a sala nova, sete curvas, quatro portas, uma
escada e um corredor onde a luz piscava há meses: e ninguém consertava.
Com o saxofone nas costas, vestia a camisa azul-marinho de
sempre. O tipo de roupa que não chama atenção e combina com qualquer dia.
Gostava de se esconder nas cores neutras. Parecia que a
roupa ajudava o corpo a não ser notado. Ser invisível era uma forma de
proteção.
A sala estava quase vazia. Um cavalete anunciava em letras
grandes:
PROJETO ESCUTA – Música, Autismo e Expressão.
Ao lado, uma mulher loira de meia-idade distribuía folhas
coloridas sobre uma mesa.
— Benício? ela perguntou, com um sorriso largo demais. — Que
bom que chegou!
Ele apenas fez um sinal com a cabeça, concordando. Evitou o
aperto de mão, disfarçando o gesto com o ajuste na alça da mochila. Ela pareceu
entender.
— Sou Irene. Psicopedagoga. Vou acompanhar o projeto com
você. As crianças estão chegando. Algumas já têm experiência musical. Outras...
só silêncio.
Benício sorriu de canto. Ele conhecia o silêncio. Era seu
idioma nativo.
Aos poucos, elas entraram.
Cinco crianças. Três meninos, duas meninas.
Cada uma com sua expressão única: olhos atentos, mãos
inquietas, fones de ouvido coloridos, bonecos apertados contra o peito. Algumas
olhavam para o teto. Outras evitavam olhar para qualquer coisa. Mas todas, de
algum modo, sentiam o ambiente.
Ele se viu nelas.
Viu-se em Davi, que não desgrudava do carrinho vermelho.
Viu-se em Luna, que ouvia música pelo celular e balançava o
corpo no próprio ritmo.
Viu-se em Caio, o mais quieto, que girava a tampa da
garrafinha com precisão cirúrgica.
Irene explicou rapidamente como seria o encontro. Nada de
regras rígidas, sem obrigatoriedades. O foco era expressão. Sons, ritmos,
escuta.
— Pode começar com o que quiser, Benício. Um som, uma nota,
uma história.
Ele se levantou devagar. Pegou o saxofone.
Respirou fundo, e tocou um sol baixo,
quente, redondo, que preencheu a sala como se chamasse alguém de volta pra
casa.
As crianças pararam. Algumas sorriram. Outras arregalaram os
olhos. Uma delas cobriu os ouvidos, mas não saiu.
A música ficou flutuando no ar, como poeira brilhante.
Benício não disse uma palavra. Mas naquele som, ele falou
tudo.
Depois, ele olhou para as crianças, não nos olhos, mas para
dentro delas, e disse com a voz calma:
— Cada som que você ouve... é uma coisa que você também pode
dizer.
E se não quiser falar com palavras, pode falar com ritmo.
Com silêncio. Com o seu jeito.
Irene sorriu. Pela primeira vez, ela viu Benício inteiro
ali.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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