Em dezembro de 2019, minha esposa, a professora Márcia, me pediu ajuda para uma atividade na escola onde leciona. A missão era desenhar o Pequeno Príncipe em tamanho gigante. Eu aceitei. Desenhei com o cuidado de quem, como o próprio personagem, prefere observar em silêncio antes de agir. A professora Ellen foi quem deu continuidade, com uma decoração que, sinceramente, me emocionou. Eu fiz o traço. Elas deram cor, vida e significado.
A imagem virou cenário. Um fundo azul escuro com estrelas amarelas, o Pequeno Príncipe com seu cachecol vermelho e um feixe de pássaros brancos que ele segura com cordas também vermelhas. Mas esses pássaros não são comuns: eles têm rostos de crianças, rostos de alunos. Eles não estão apenas voando, estão sendo levados, guiados. O Príncipe, ali, se torna pedagogo. É uma metáfora poderosa da educação com afeto: a criança conduzindo outras crianças num céu simbólico.
Ali vi mais do que arte. Vi um espelho.
Eu sou um pouco o Pequeno Príncipe
Sempre fui um estranho para os adultos e um ser quieto para as crianças. Um menino que não olhava nos olhos, que não se encaixava nas brincadeiras barulhentas, que gostava mais de pensar do que de falar. Como o Pequeno Príncipe, eu vinha de um planeta só meu. Um mundo interno, cheio de perguntas. Um mundo que muitos não compreendiam, nem mesmo eu, até entender que sou autista.
Hoje, adulto, reconheço: a história do Pequeno Príncipe me representa. Ele vive uma jornada onde o que realmente importa é invisível aos olhos. Eu também.
Ao longo da vida, conheci planetas simbólicos: a escola, a música, o serviço público, os livros. Em cada um, encontrei personagens que me ensinaram algo. Mas como o Príncipe com sua rosa, foi no afeto cultivado, em silêncio, com cuidado, no tempo certo, que aprendi o que é o essencial.
Minha esposa é essa rosa. A música é meu planeta B-612. E minha escrita é o avião onde tento contar o que vi enquanto caía do céu de mim mesmo.
Reflexão sociológica: o essencial não entra na estatística
O Pequeno Príncipe não entende os adultos que contam estrelas para possuí-las. Ele prefere uma flor única a mil números. Sociologicamente, essa crítica é atual. Vivemos numa sociedade que valoriza produção, performance, normalidade. Pessoas como eu, autistas, silenciosos, intensos, muitas vezes somos vistos como “fora do esperado”. Mas talvez o problema não esteja em nós, e sim no modo como os adultos aprenderam a medir a vida.
Na decoração feita pela professora Ellen, há um detalhe que merece destaque: cada aluno representado como um pássaro que voa. Isso é simbólico. Porque na educação com amor, as crianças não são caixas a serem preenchidas. Elas são pássaros a serem libertos.
A escola, quando feita com afeto, vira o planeta onde adultos podem reaprender a escutar. Onde o silêncio de uma criança é respeitado. Onde a sensibilidade não é corrigida, é cultivada.
Conclusão: ensinar é cuidar do invisível
Hoje, olhando para aquele painel com o Pequeno Príncipe voando entre estrelas e guiando crianças-pássaros, eu penso: talvez eu nunca tenha deixado de ser uma dessas crianças. Continuo tentando entender os adultos, continuo buscando sentidos no meio do barulho do mundo.
E talvez o meu maior desejo, como o dele, seja simples:
Que as pessoas voltem a enxergar com os olhos do coração.
Créditos do painel: Vilmar (desenho), professoras Ellen e Márcia (decoração).
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