Na tarde seguinte, Benício voltou à sala do projeto com uma ideia que vinha ensaiando há dias.
Levava uma partitura incompleta na mochila.
Não uma de papel. Uma interna. Uma melodia que começava a
nascer desde o dia em que ouviu Luna tocar a flauta pela primeira vez.
Ao entrar, viu Melina sentada no chão com as crianças.
Sim, Melina.
Ela havia pedido para visitar o projeto. Queria conhecer os
pequenos músicos.
Como psicopedagoga e professora, tinha um dom especial de
descer ao nível dos olhos das crianças, sem pressa, sem medo, sem fórmulas
prontas.
Seu cabelo claro e encaracolado estava solto, preso por uma
fita azul.
Seus olhos, sempre atentos, brilhavam com aquela doçura de
quem sabe ouvir até o que não é dito.
As crianças gravitavam ao redor dela como planetas ao sol.
Davi mostrava seu carrinho.
Luna cantarolava uma melodia inventada.
Caio observava em silêncio, mas com os ombros relaxados,
sinal claro de que se sentia seguro.
— Você chegou, disse Melina, sorrindo para Benício, sem
levantar.
Ele sinalizou com a cabeça, concordando, um pouco
desconcertado.
Mesmo depois de anos juntos, ainda se surpreendia com a
leveza com que ela habitava o mundo.
Ela levantou-se devagar, aproximou-se e disse em voz baixa,
só para ele:
— Você não percebe, mas está ensinando muito mais do que
música.
Benício baixou os olhos.
— Eu só mostro sons.
Melina sorriu, tocando levemente sua mão.
— Mas os sons mais importantes são os que você deixou sair
de dentro de si. E eles moram em você há muito tempo.
A atividade começou.
Benício propôs algo diferente: que cada criança escolhesse
um som que representasse “como se sente hoje”.
Luna escolheu o barulho da chuva.
Caio, o tic-tac de um relógio.
Davi apontou para o gravador do trem.
Benício pensou por um instante.
E então tocou uma sequência curta no saxofone. Três notas
lentas, graves, e uma quarta nota suspensa no ar, que parecia não querer
acabar.
Melina o olhou como quem reconhece o gesto de alguém se
despindo emocionalmente.
Ela sabia: aquela era a voz que morava nele, e que ele só
agora começava a libertar.
Depois da aula, sentaram-se os dois na escadaria do pátio,
lado a lado.
As crianças já haviam ido embora. O sol caía lento atrás das
árvores.
— Lembra quando nos conhecemos? Ela perguntou.
Benício sorriu.
— Lembro do que senti. Mas não do que falei.
— Você não falou. Você tocou.
— E você entendeu.
— Porque eu aprendi a escutar com o coração. Igual estou
vendo as crianças fazerem agora… por sua causa.
Silêncio.
Mas era um silêncio confortável, como um cobertor leve sobre
o peito.
Melina encostou a cabeça em seu ombro.
— Talvez esteja na hora de você falar com palavras também,
Benício. Não precisa esconder mais.
— Falar sobre… mim?
Ela sinalizou com a cabeça, concordando.
— Sobre quem você é. Sobre ser autista. Sobre tudo isso que
você achava que te separava das pessoas… mas que hoje te aproxima delas.
Benício ficou em silêncio por mais um tempo.
— Eu não sei se consigo.
— Consegue sim. Mas comece devagar. Talvez… com uma música?
Ele olhou para ela, e sorriu.
— Então, vou compor. Para mim. Para você. Para elas.
Uma música chamada “A Voz Que Mora em Mim”.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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