Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim

Na tarde seguinte, Benício voltou à sala do projeto com uma ideia que vinha ensaiando há dias.

Levava uma partitura incompleta na mochila.

Não uma de papel. Uma interna. Uma melodia que começava a nascer desde o dia em que ouviu Luna tocar a flauta pela primeira vez.

Ao entrar, viu Melina sentada no chão com as crianças.

Sim, Melina.

Ela havia pedido para visitar o projeto. Queria conhecer os pequenos músicos.

Como psicopedagoga e professora, tinha um dom especial de descer ao nível dos olhos das crianças, sem pressa, sem medo, sem fórmulas prontas.

Seu cabelo claro e encaracolado estava solto, preso por uma fita azul.

Seus olhos, sempre atentos, brilhavam com aquela doçura de quem sabe ouvir até o que não é dito.

As crianças gravitavam ao redor dela como planetas ao sol.

Davi mostrava seu carrinho.

Luna cantarolava uma melodia inventada.

Caio observava em silêncio, mas com os ombros relaxados, sinal claro de que se sentia seguro.

— Você chegou, disse Melina, sorrindo para Benício, sem levantar.

Ele sinalizou com a cabeça, concordando, um pouco desconcertado.

Mesmo depois de anos juntos, ainda se surpreendia com a leveza com que ela habitava o mundo.

Ela levantou-se devagar, aproximou-se e disse em voz baixa, só para ele:

— Você não percebe, mas está ensinando muito mais do que música.

Benício baixou os olhos.

— Eu só mostro sons.

Melina sorriu, tocando levemente sua mão.

— Mas os sons mais importantes são os que você deixou sair de dentro de si. E eles moram em você há muito tempo.

A atividade começou.

Benício propôs algo diferente: que cada criança escolhesse um som que representasse “como se sente hoje”.

Luna escolheu o barulho da chuva.

Caio, o tic-tac de um relógio.

Davi apontou para o gravador do trem.

Benício pensou por um instante.

E então tocou uma sequência curta no saxofone. Três notas lentas, graves, e uma quarta nota suspensa no ar, que parecia não querer acabar.

Melina o olhou como quem reconhece o gesto de alguém se despindo emocionalmente.

Ela sabia: aquela era a voz que morava nele, e que ele só agora começava a libertar.

Depois da aula, sentaram-se os dois na escadaria do pátio, lado a lado.

As crianças já haviam ido embora. O sol caía lento atrás das árvores.

— Lembra quando nos conhecemos? Ela perguntou.

Benício sorriu.

— Lembro do que senti. Mas não do que falei.

— Você não falou. Você tocou.

— E você entendeu.

— Porque eu aprendi a escutar com o coração. Igual estou vendo as crianças fazerem agora… por sua causa.

Silêncio.

Mas era um silêncio confortável, como um cobertor leve sobre o peito.

Melina encostou a cabeça em seu ombro.

— Talvez esteja na hora de você falar com palavras também, Benício. Não precisa esconder mais.

— Falar sobre… mim?

Ela sinalizou com a cabeça, concordando.

— Sobre quem você é. Sobre ser autista. Sobre tudo isso que você achava que te separava das pessoas… mas que hoje te aproxima delas.

Benício ficou em silêncio por mais um tempo.

— Eu não sei se consigo.

— Consegue sim. Mas comece devagar. Talvez… com uma música?

Ele olhou para ela, e sorriu.

— Então, vou compor. Para mim. Para você. Para elas.

Uma música chamada “A Voz Que Mora em Mim”.


Sumário:

Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza

Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio

Capítulo 3 – O Ritmo dos Dias

Capítulo 4 – A Flauta de Luna

Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam

Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim

Capítulo 7 – A Música Que Nos Une

Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis

Capítulo 9 – Partituras para o Futuro




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