O Gesso e o Grito Invisível: Memória Sensorial de um Braço Quebrado

Não lembro o momento exato em que quebrei o braço.

Talvez porque eu não entendi o que estava acontecendo.

Só lembro da dor, estranha, silenciosa, incompreensível.

Meu braço não mexia direito. E eu não sabia por quê.

Ninguém percebeu.

Nem meu pai. Nem minha mãe.

Mas isso não me surpreende.

Eu já era o menino que não deixava ninguém encostar.

Já era o menino do silêncio, dos gestos retraídos, do incômodo oculto.

Era mais fácil pensarem que era “mais um comportamento meu”.

Mas não era. Era fratura.

Foi um amigo da família que notou. Ele viu meu jeito de andar, de proteger o braço.

Alertou meus pais.

Meu pai me levou ao médico.

E o diagnóstico caiu como um susto que explicava o inexplicável:

Meu braço estava quebrado.

Já estava até colando errado.

O médico precisou quebrar de novo, para consertar.

E por incrível que pareça, esse momento não me marcou tanto quanto o que veio depois.

O gesso.

O gesso era uma prisão sensorial.

Um peso que não me pertencia.

Uma roupa que não saía.

As coceiras eram o pior. Uma tortura silenciosa.

Não dava para coçar por dentro.

Não dava para explicar.

Não dava para fugir.

O incômodo era diário. Constante.

Não importava a posição, o clima, o cuidado.

Era uma angústia cravada no braço.

E aí veio o dia de tirar o gesso.

Eu devia estar feliz. Mas não estava.

Aquela máquina.

Aquela máquina barulhenta.

O som entrava no meu cérebro como um corte.

Parecia que ia me machucar, me rasgar.

Tive calafrios.

Queria correr.

Mas fiquei.

O homem de jaleco branco abriu o gesso.

Fez o barulho.

E então... o alívio.

Ar. Pele. Movimento.

Mas algo ficou estranho.

Durante dias, talvez semanas, eu sentia como se o gesso ainda estivesse lá.

Meu cérebro ainda o carregava.

A ausência dele era uma mudança grande demais.

Sem querer, eu tinha me acostumado.

Minha rotina já tinha se adaptado ao peso, à posição, ao limite.

E agora, sem gesso, eu era outro de novo.

Outra mudança. Outro ajuste interno.


Hoje entendo essa história de outro jeito.

Não foi só um braço quebrado.

Foi uma experiência sensorial profunda.

E invisível.

O autismo, em mim, sempre foi isso: sentir muito e dizer pouco.

O mundo só enxergou quando o osso mostrou.

Mas antes do osso, já doía.

Só que a dor de dentro ninguém viu.


E por isso escrevo.

Para que outras pessoas vejam.

Sintam.

Entendam.

O que pra muitos é só gesso, pra mim foi cárcere, rotina, medo e memória.


Ainda hoje, às vezes, meu corpo lembra.

E eu escrevo, para não esquecer.


— 

Por Vilmar Francisco de Oliveira

Músico. Escritor. Servidor público. Autista que transforma silêncio em memória e incômodo em sentido.


Braço quebrado
Braço quebrado

Comentários