Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza

O Som das Coisas que Ninguém Ouve: Reflexão sobre o autismo e os sons invisíveis


Os sons que ouço não são os mesmos que os outros escutam. Às vezes, é o silêncio que grita em mim. Este texto nasceu do que ninguém percebe, mas pulsa forte dentro de mim.

 

Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza

 

Toda segunda-feira tem cheiro de papel úmido, café ralo e barulho de teclado nervoso.

Benício atravessou o saguão da repartição com os passos contados. Sete até a catraca. Mais oito até a porta de vidro. E depois os nove finais até sua mesa. A rotina era uma matemática silenciosa, do tipo que só ele entendia, e precisava entender, porque o mundo fora dele parecia sempre prestes a desabar.

Sentou-se. Ligou o computador. Colocou os fones de ouvido.

Não havia música, nem podcast, nem voz humana. Apenas som branco. Um chiado constante, como se ele estivesse escondido dentro de uma nuvem. Era assim que conseguia respirar: quando o mundo sumia um pouco.

O relógio digital piscava 11:47. Faltavam treze minutos para o expediente oficial, mas Benício já estava ali. Sempre estava. Gostava de chegar antes de todo mundo: não por vaidade, mas por necessidade. O silêncio vazio do começo da tarde era seu único momento seguro.

“É hoje”, pensou, sem saber exatamente o quê.

Tinha recebido uma mensagem da chefia na sexta-feira:

"Benício, gostaríamos de contar com você como voluntário no novo projeto musical com crianças do programa de inclusão."

Aquilo lhe causou um leve aperto no estômago no fim de semana.

Crianças. Pessoas. Contato visual. Ruídos imprevisíveis.

Mas também: música. Saxofone. O único idioma que ele falava sem tropeçar.

Desviou o olhar para a estante onde guardava a velha case do instrumento. Estava ali, fechado há semanas. Esperando.

Benício era servidor público administrativo há mais de 15 anos. Regular. Silencioso. Comprometido. Um funcionário invisível, do jeito que preferia ser. Mas havia algo dentro dele que não se calava. Um som interior. Uma inquietação sem forma.

Seu diagnóstico havia vindo tarde, aos 41.

“Transtorno do Espectro Autista - Nível 1 de suporte”, disse o psiquiatra, com tom clínico, sem surpresa.

Benício não se sentiu rotulado. Sentiu-se traduzido.

Como se alguém finalmente tivesse decifrado a partitura da sua alma.

Lembrou-se da infância com cadernos rasgados, professores impacientes e colegas que o chamavam de “ET” porque ele não gostava de brincar. Só queria ouvir sons: o barulho do vento nas folhas, a chaleira apitando, o apito do trem ao longe.

Sons que ninguém mais ouvia. Mas ele sim.

A chegada dos colegas interrompeu seu mergulho.

Risos altos. Teclados acelerados. Vozes cruzando o ar.

Ele encolheu os ombros e ajustou o fone. Respirou fundo.

Do outro lado da sala, a assistente do projeto acenava com uma pasta colorida na mão. O projeto começaria hoje à tarde. As crianças autistas da rede municipal viriam. E ele, Benício Pereira, seria o responsável por ensinar música a elas. Logo ele, que sempre fugiu das pessoas… agora teria que conduzi-las.

“Você pode ser o adulto que você precisava quando era criança”, a esposa dissera.

“Ou pelo menos tentar ser.”

Ele não respondeu na hora. Só sorriu de leve.

Um sorriso cansado, mas sincero.

Pegou sua mochila, destravou o estojo do saxofone e o olhou como quem reencontra um velho amigo. Passou os dedos pelas chaves metálicas e fechou os olhos por um segundo.

Ali estava tudo o que ele não conseguia dizer.

E talvez fosse hora de deixar o mundo ouvir.


Sumário:

Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza

Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio

Capítulo 3 – O Ritmo dos Dias

Capítulo 4 – A Flauta de Luna

Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam

Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim

Capítulo 7 – A Música Que Nos Une

Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis

Capítulo 9 – Partituras para o Futuro






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