A ideia nasceu numa conversa casual no corredor.
Irene, animada com a evolução das crianças, sugeriu:
— E se organizássemos uma apresentação de encerramento do
projeto? Algo simples… musical, simbólico, com os pais assistindo?
Benício congelou por dentro.
Público. Luzes. Pessoas olhando.
Palmas, expectativas, falas. Tudo o que sempre evitou.
Mas, ao mesmo tempo… algo dentro dele sussurrou:
“Talvez seja a hora.”
Naquela noite, contou a ideia a Melina, enquanto ela
corrigia relatórios sentada à mesa.
— É um recital, disse ele, sem esconder a ansiedade. Mas...
e se eu travar?
Melina fechou o caderno. Aproximou-se.
Seu rosto estava calmo, seus olhos sempre atentos.
— Travar não é fracasso, Benício. É só o corpo pedindo
cuidado.
— E se eu não conseguir tocar?
— Então você fala.
— E se eu não conseguir falar?
— Então você sente. E quem estiver ali vai sentir com você.
Ela acariciou seu braço.
— Você não precisa provar nada. Mas se quiser se mostrar,
agora tem quem escute.
Melina sabia o que dizia.
Todos os dias, ela escutava crianças também.
Na escola pública onde dava aulas, não era apenas
professora, era também observadora de sinais, estava sempre atenta a
indicadores que sugerisse dificuldade de aprendizagem em crianças.
Notava o menino que balançava demais na cadeira, a menina
que repetia frases o tempo todo, o que tapava os ouvidos quando tocava o sinal.
Ela observava com amor e ciência.
Registrava cada padrão, cada silêncio, cada desconforto.
E com o cuidado de quem conhece o peso das palavras, redigia
relatórios para os pais.
Relatórios que não diagnosticavam, mas descreviam os
caminhos para que médicos e psicólogos entendessem melhor aquelas almas miúdas,
tão cheias de universos próprios.
— Eu não olho para corrigir, dizia. Eu olho para entender.
E tudo que escrevia era com ética, respeito, delicadeza.
Como quem planta uma semente de escuta num mundo que tem
pressa demais.
Benício sempre admirou isso nela.
— Você vê o que ninguém vê, dizia ele.
— Porque um dia eu vi você, ela respondia.
No dia seguinte, na sala do projeto, ele contou a novidade
às crianças:
— Vamos fazer um concerto. De encerramento. Com pais,
professores… e música feita por vocês.
Luna vibrou.
Davi gritou “trem azul!”
Caio sorriu e apertou o gravador contra o peito.
Mas foi Benício quem mais se surpreendeu com a própria
coragem.
Naquele mesmo dia, começou a escrever sua primeira música
com letra.
Uma canção chamada “A Música Que Nos Une”.
À noite, Melina o ajudava a escolher palavras, sem forçar.
— Coloca o que mora em você. Mesmo que seja estranho.
E então ele escreveu:
“Sou feito de sons que você não escuta.
Mas, se me ouvir com calma, vai me entender.
Não falo como todos, mas sinto como poucos.
Sou silêncio que canta. Sou voz por nascer.”
E pela primeira vez, Benício sentiu que ser autista não era
o fim de nada. Era o começo de uma forma única de existir.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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