Era uma tarde de primavera.
O auditório da repartição fora improvisado com cadeiras
coloridas, flores de papel, cartazes desenhados pelas próprias crianças e
instrumentos espalhados como brinquedos sagrados.
No fundo do palco, uma faixa bordada com delicadeza por
Melina dizia:
“Todo som é um mundo. E todo mundo merece ser ouvido.”
Os pais chegaram aos poucos, tímidos, curiosos. Alguns
levavam flores. Outros carregavam celulares ansiosos para registrar o momento.
Havia ali uma mistura de expectativa e ternura no ar, como se todos soubessem
que presenciariam algo maior do que música.
Benício vestia camisa branca e calça escura. O saxofone
reluzia nas mãos, mas sua respiração ainda era curta.
Melina se aproximou.
Estava linda, com cabelos alisados e soltos, um vestido
azul-claro e um brilho sereno nos olhos.
— Pronto? ela perguntou, já sabendo a resposta.
Benício não respondeu. Apenas sinalizou com a cabeça,
concordando.
Sabia que não se está “pronto” para esse tipo de coisa.
Apenas se está presente.
A apresentação começou com Luna, que tocou sua flautinha de
brinquedo.
Depois, Davi, que mostrou ao público o som do trem no
gravador e sorriu como quem acabava de inaugurar uma estação.
Caio usou um teclado infantil para tocar sons graves,
dizendo que representava “o tempo passando devagar”.
Cada criança teve seu momento.
Nenhuma foi interrompida. Nenhuma foi corrigida.
Elas foram sentidas.
E então, era a vez de Benício.
Subiu ao palco, respirando fundo.
A luz não era forte. Mas seus olhos ainda se abaixavam.
Mesmo assim, com Melina sentada na primeira fileira, ele
encontrou forças.
Ajeitou o microfone, limpou a garganta, segurou o saxofone
com as duas mãos.
Mas, antes de tocar, falou.
A voz saiu baixa, mas firme.
— Boa tarde…
Eu sou Benício. Sou músico. Servidor público. Casado com uma
mulher maravilhosa que está ali, apontou para Melina, que sorriu e quase
chorou.
Sou alguém que ama o silêncio, porque no silêncio eu escuto
melhor.
Pausa.
— Também sou autista.
Fui diagnosticado depois dos 40 anos. Passei a vida achando
que era apenas “estranho”, “diferente”, “esquisito demais para o mundo”.
Mas hoje… vendo essas crianças, eu entendo que não sou um
erro de fabricação.
Sou só... uma forma diferente de música.
O público silenciou. Alguns rostos se emocionaram. Um pai
chorava discretamente.
— O que vocês viram aqui hoje não foi um show. Foi um
retrato.
Do que acontece quando escutamos com o coração, e não com os
rótulos.
Pausa final.
— Essa música se chama "A Voz Que Mora em Mim".
E agora… ela vai morar com vocês também.
Então Benício tocou.
Primeiro só. Depois as crianças o acompanharam com
instrumentos simples.
Melina cantava baixinho, acompanhando cada nota como quem
sopra o vento nas velas de um barco.
Não havia perfeição. Mas havia verdade.
E no fim, ninguém aplaudiu de imediato.
Porque o silêncio que veio logo após foi mais poderoso que
qualquer palma.
Era um silêncio que escutava.
Um silêncio que abraçava.
Na saída, os pais vinham um a um agradecer.
— Meu filho nunca sorriu tanto…
— Eu também acho que meu menino pode ser autista. Você me
deu coragem pra procurar ajuda.
— Obrigado por falar. E por tocar. E por ser você.
Benício sorria, tímido, sem saber o que dizer.
Melina se aproximou, sussurrando em seu ouvido:
— Você tocou muito além da música hoje.
Tocou a parte invisível das pessoas.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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