Os sons que ouço não são os mesmos que os outros escutam. Às vezes, é o silêncio que grita em mim. Este texto nasceu do que ninguém percebe, mas pulsa forte dentro de mim.
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Toda
segunda-feira tem cheiro de papel úmido, café ralo e barulho de teclado
nervoso.
Benício
atravessou o saguão da repartição com os passos contados. Sete até a catraca.
Mais oito até a porta de vidro. E depois os nove finais até sua mesa. A rotina
era uma matemática silenciosa, do tipo que só ele entendia, e precisava
entender, porque o mundo fora dele parecia sempre prestes a desabar.
Sentou-se.
Ligou o computador. Colocou os fones de ouvido.
Não
havia música, nem podcast, nem voz humana. Apenas som branco. Um chiado
constante, como se ele estivesse escondido dentro de uma nuvem. Era assim que
conseguia respirar: quando o mundo sumia um pouco.
O
relógio digital piscava 11:47. Faltavam treze minutos para o expediente
oficial, mas Benício já estava ali. Sempre estava. Gostava de chegar antes de
todo mundo: não por vaidade, mas por necessidade. O silêncio vazio do começo da
tarde era seu único momento seguro.
“É
hoje”, pensou, sem saber exatamente o quê.
Tinha
recebido uma mensagem da chefia na sexta-feira:
"Benício, gostaríamos de contar com você como
voluntário no novo projeto musical com crianças do programa de inclusão."
Aquilo
lhe causou um leve aperto no estômago no fim de semana.
Crianças.
Pessoas. Contato visual. Ruídos imprevisíveis.
Mas
também: música. Saxofone. O único idioma que ele falava sem tropeçar.
Desviou
o olhar para a estante onde guardava a velha case do instrumento. Estava
ali, fechado há semanas. Esperando.
Benício
era servidor público administrativo há mais de 15 anos. Regular. Silencioso.
Comprometido. Um funcionário invisível, do jeito que preferia ser. Mas havia
algo dentro dele que não se calava. Um som interior. Uma inquietação sem forma.
Seu
diagnóstico havia vindo tarde, aos 41.
“Transtorno do Espectro Autista - Nível 1 de suporte”,
disse o psiquiatra, com tom clínico, sem surpresa.
Benício
não se sentiu rotulado. Sentiu-se traduzido.
Como
se alguém finalmente tivesse decifrado a partitura da sua alma.
Lembrou
da infância com cadernos rasgados, professores impacientes e colegas que o
chamavam de “ET” porque ele não gostava de brincar. Só queria ouvir sons: o
barulho do vento nas folhas, a chaleira apitando, o apito do trem ao longe.
Sons
que ninguém mais ouvia. Mas ele sim.
A
chegada dos colegas interrompeu seu mergulho.
Risos
altos. Teclados acelerados. Vozes cruzando o ar.
Ele
encolheu os ombros e ajustou o fone. Respirou fundo.
Do
outro lado da sala, a assistente do projeto acenava com uma pasta colorida na
mão. O projeto começaria hoje à tarde. As crianças autistas da rede municipal
viriam. E ele, Benício Pereira, seria o responsável por ensinar música a elas.
Logo ele, que sempre fugiu das pessoas… agora teria que conduzi-las.
“Você pode ser o adulto que você precisava quando era
criança”, a esposa dissera.
“Ou pelo menos tentar ser.”
Ele
não respondeu na hora. Só sorriu de leve.
Um
sorriso cansado, mas sincero.
Pegou
sua mochila, destravou o estojo do saxofone e o olhou como quem reencontra um
velho amigo. Passou os dedos pelas chaves metálicas e fechou os olhos por um
segundo.
Ali
estava tudo o que ele não conseguia dizer.
E
talvez fosse hora de deixar o mundo ouvir.
Capítulo 2 – As Crianças do
Silêncio
Benício
chegou quinze minutos antes.
O
projeto de música com as crianças começaria às duas da tarde, na sala multiuso
do anexo da repartição. Ele já havia mapeado o caminho mentalmente: da sua mesa
até a sala nova, sete curvas, quatro portas, uma escada e um corredor onde a
luz piscava há meses: e ninguém consertava.
Com
o saxofone nas costas, vestia a camisa azul-marinho de sempre. O tipo de roupa
que não chama atenção e combina com qualquer dia.
Gostava
de se esconder nas cores neutras. Parecia que a roupa ajudava o corpo a não ser
notado. Ser invisível era uma forma de proteção.
A
sala estava quase vazia. Um cavalete anunciava em letras grandes:
PROJETO
ESCUTA – Música, Autismo e Expressão.
Ao
lado, uma mulher loira de meia-idade distribuía folhas coloridas sobre uma
mesa.
—
Benício? ela perguntou, com um sorriso largo demais. — Que bom que chegou!
Ele
apenas fez um sinal com a cabeça, concordando. Evitou o aperto de mão,
disfarçando o gesto com o ajuste na alça da mochila. Ela pareceu entender.
—
Sou Irene. Psicopedagoga. Vou acompanhar o projeto com você. As crianças estão
chegando. Algumas já têm experiência musical. Outras... só silêncio.
Benício
sorriu de canto. Ele conhecia o silêncio. Era seu idioma nativo.
Aos
poucos, elas entraram.
Cinco
crianças. Três meninos, duas meninas.
Cada
uma com sua expressão única: olhos atentos, mãos inquietas, fones de ouvido
coloridos, bonecos apertados contra o peito. Algumas olhavam para o teto.
Outras evitavam olhar para qualquer coisa. Mas todas, de algum modo, sentiam o
ambiente.
Ele
se viu nelas.
Viu-se
em Davi, que não desgrudava do carrinho vermelho.
Viu-se
em Luna, que ouvia música pelo celular e balançava o corpo no próprio ritmo.
Viu-se
em Caio, o mais quieto, que girava a tampa da garrafinha com precisão
cirúrgica.
Irene
explicou rapidamente como seria o encontro. Nada de regras rígidas, sem
obrigatoriedades. O foco era expressão. Sons, ritmos, escuta.
—
Pode começar com o que quiser, Benício. Um som, uma nota, uma história.
Ele
se levantou devagar. Pegou o saxofone.
Respirou
fundo, e tocou um sol baixo, quente, redondo, que preencheu a sala como
se chamasse alguém de volta pra casa.
As
crianças pararam. Algumas sorriram. Outras arregalaram os olhos. Uma delas
cobriu os ouvidos, mas não saiu.
A
música ficou flutuando no ar, como poeira brilhante.
Benício
não disse uma palavra. Mas naquele som, ele falou tudo.
Depois,
ele olhou para as crianças, não nos olhos, mas para dentro delas, e disse com a
voz calma:
—
Cada som que você ouve... é uma coisa que você também pode dizer.
E
se não quiser falar com palavras, pode falar com ritmo. Com silêncio. Com o seu
jeito.
Irene
sorriu. Pela primeira vez, ela viu Benício inteiro ali.
Capítulo 3 – O Ritmo dos Dias
O
mundo de Benício era feito de repetições.
Caminhos
repetidos. Horários fixos. Sons conhecidos.
Era
assim que ele se sentia seguro. Era assim que funcionava.
Mas
agora, com o projeto musical acontecendo três vezes por semana, algo havia
mudado na simetria dos seus dias. As crianças haviam entrado como notas novas
em sua partitura. E, mesmo descompassadas, elas começavam a tocar algo dentro
dele.
Na
segunda aula, Caio, o menino que girava a tampa da garrafa, sorriu quando
Benício tocou um trecho de “Asa Branca” no saxofone.
Na
terceira, Luna tirou os fones de ouvido por vontade própria.
Na
quarta, Benício percebeu que havia decorado o nome de todos.
Na
quinta, ele chegou sorrindo, mesmo sem perceber.
Entre
uma nota e outra, entre um silêncio e um olhar vago de alguma criança, Benício
se via em espelhos quebrados.
Memória:
Ele
tinha oito anos quando começou a andar em círculos pela casa.
A
mãe dizia que era “coisa de criança estranha”.
Na
escola, os professores pediam para ele “parar de viajar e prestar atenção”.
Mas
ele estava prestando atenção, só não naquilo que os outros queriam.
O
barulho do ventilador.
O
ranger da porta.
O
som das palavras que vinham atrasadas na cabeça.
A
música que fazia com os dedos sobre a mesa.
Tudo
isso era real. Mais real do que as perguntas da professora ou o recreio
barulhento.
Na
adolescência, tentou se encaixar.
Tentou
sorrir na hora certa. Falar de futebol. Rir de piadas que não entendia.
Mas
tudo soava falso. Forçado. Esforçado demais.
Até
que desistiu.
Não
do mundo, mas da ideia de que precisava pertencer a ele como os outros
pertenciam.
E
então, aos 17 anos, achou um saxofone velho no depósito da escola.
Era
como se alguém tivesse deixado uma chave ali, esperando por ele.
Aprendeu
sozinho. Sem partituras. Só ouvindo.
E,
pela primeira vez, as palavras que ele nunca disse saíram em forma de som.
Presente:
De
volta ao presente, na sala do projeto, Benício viu as crianças explorando
instrumentos de percussão.
Davi
batia o tambor com o mesmo padrão, sem variações.
—
Está tocando como um trem, disse Benício.
Davi
sorriu.
—
Trem azul, completou, com os olhos brilhando.
Benício
não esperava aquilo. O menino falava pouco.
Mas
ali, no ritmo, a comunicação havia acontecido.
—
Você gosta de trens? Ele perguntou.
Davi
sinalizou com a cabeça, concordando.
Benício
lembrou que, na infância, gravava sons de trens em fita cassete.
Às
vezes, colocava para tocar durante a madrugada, só para dormir em paz.
Era
como se o som certo organizasse o mundo por dentro.
E
ele queria que aquelas crianças tivessem essa chance também.
Capítulo 4 – A Flauta de Luna
A
aula começou diferente naquela tarde.
Luna,
que costumava ser a mais dispersa, aproximou-se da mesa de instrumentos e pegou
uma flautinha de brinquedo.
Assoprou
um som agudo, desafinado, mas insistiu.
E
então fez de novo. E outra vez.
Até
que um som doce surgiu, inesperado, como se ela tivesse encontrado a frequência
certa da própria alma.
Benício
parou o que fazia.
O
tempo ficou suspenso por um instante.
Naquele
sopro hesitante e cheio de verdade, algo dentro dele vibrou, um acorde
esquecido, guardado em alguma parte silenciosa de sua história.
Foi
então que ele lembrou de Melina.
Memória:
Era
uma noite quente de verão, sete anos atrás.
Benício
havia sido convidado para tocar saxofone num evento cultural do bairro.
Não
era comum aceitar convites, mas naquele dia algo o impulsionou.
Estava
no palco lateral, afinando o instrumento, quando ouviu aquela voz.
Uma
mulher cantava “Wave”, de Tom Jobim.
Mas
não era só a música… era o modo como ela cantava.
Cada
nota era pura, cheia de sentimento, como se a própria canção estivesse
respirando.
Benício
paralisou.
Não
conseguia tirar os olhos dela: Melina Silva. Branca de traços indígena, cabelos
claros e encaracolados, preso com uma flor vermelha, e olhar sereno.
Mas
o que o prendeu de verdade foi a voz. Aquele som…
Era
como se alguém tivesse encontrado a exata vibração do seu coração.
Depois
da apresentação, ele quis conhecê-la.
Mas
não conseguia falar.
As
palavras travaram na garganta.
Seu
corpo enrijeceu. As mãos suavam.
Não
sabia como dizer nada: apenas o quanto queria dizer.
Melina,
com sua sensibilidade natural, percebeu.
Naquele
dia, ele apenas a observou de longe.
Mas
no dia seguinte, ela o procurou no Instagram do evento.
Mandou
uma mensagem simples:
“Seu sax me tocou. Tocamos juntos de novo algum dia?”
Benício
levou uma hora para responder.
Apagava
e reescrevia, tentava parecer natural, mas tudo era esforço.
Finalmente
digitou:
“Sua voz é de anjo. Eu só sei conversar com sons. Mas, se
quiser, podemos tentar por aqui.”
E
foi assim que começaram.
Mensagens
curtas.
Emojis,
áudios curtos, trechos de música.
Ela
entendeu seus silêncios. Ele respeitou seu jeito doce e leve.
Primeiro,
amigos. Depois, confidentes.
Até
que, num ensaio improvisado na praça, ela cantou olhando nos olhos dele…
…e
ele tocou como se nunca mais fosse parar.
O
beijo aconteceu naturalmente. Como se já estivesse ensaiado no ar desde o
primeiro acorde.
Meses
depois estavam namorando.
E
no ano seguinte, casados, com direito a entrada da noiva cantando e o noivo
solando “Eu sei que vou te amar”.
Presente:
Luna
assoprou a flauta outra vez.
Benício
se aproximou devagar.
Sentou
ao lado dela, pegou o saxofone, e improvisou uma melodia suave, acompanhando o
ritmo da menina.
Foi
como um dueto silencioso entre dois mundos.
Ela
olhava para o chão, mas sorria. Ele não dizia nada, mas estava inteiramente
presente.
Naquela
tarde, Benício não ensinou música.
Apenas
compartilhou sentimento.
Na
saída, Irene comentou:
—
Luna parece outra criança hoje. Você viu como ela te esperava?
Benício
sinalizou com a cabeça concordando, olhando para o céu pela primeira vez em
muito tempo.
—
Acho que ela ouviu... o que nem eu sabia que estava tocando.
Capítulo 5 – Quando os Sons
Faltam
A
quinta-feira amanheceu cinzenta.
O
céu carregava nuvens densas como se o mundo estivesse por dentro de uma dor.
Benício
acordou com um peso no peito.
Não
havia acontecido nada concreto, mas o corpo sabia.
Era
como uma afinação fora do tom, um ruído abafado, um “quase” que ele não
conseguia identificar.
Tomou
café em silêncio. Olhou o saxofone no canto da sala, mas não o tocou.
Sentia
como se o som tivesse desaparecido de dentro.
Na
repartição, tudo estava igual, mas ele não estava.
A
sala do projeto estava cheia quando ele chegou.
As
crianças espalhavam os instrumentos, Irene arrumava as cadeiras, mas havia um
ruído estranho no ar.
Davi,
o menino do trem, estava irritado.
Girava
o carrinho com força, batia no chão, murmurava coisas que ninguém entendia.
—
Ele está em crise sensorial, disse Irene, em voz baixa. Hoje teve mudança de
horário na escola, e ele se desorganizou.
Benício
paralisou por um segundo.
Não
sabia o que fazer.
Lembrou-se
de si mesmo aos nove anos, trancado no banheiro da escola por não suportar o
som da sirene.
Lembrou-se
que certa vez, que gritou com sua mãe só porque ela mudou o lugar dos pratos.
Lembrou
da explosão verbal no trabalho quando alguém desligou a luz sem avisar.
“Ele tem explosões. Mas não é grosseria. É defesa.”
E
agora, fazia sentido ao vivo, diante de Davi.
Benício
se ajoelhou devagar, afastou os outros instrumentos e sentou-se a um metro de
distância do menino.
Não
disse nada.
Não
se aproximou.
Apenas
tirou da mochila o gravador antigo que levava consigo, um relicário de sons, e
deu play.
Era
o som de um trem partindo lentamente.
Chapa…
chapa… chapa…
Davi
parou.
O
carrinho caiu da mão.
Ele
olhou para o gravador.
Os
olhos brilharam de novo.
—
Trem azul, sussurrou.
Benício
sinalizou com a cabeça concordando, com os olhos marejados.
Não
era só Davi que estava em crise. Ele também estava.
Mas
agora eles se entendiam no mesmo idioma.
Mais
tarde, Irene o chamou no corredor.
—
Você salvou o dia.
—
Não salvei nada, respondeu. Só lembrei como é quando tudo dentro da gente sai
do controle.
Ela
respirou fundo.
—
É por isso que você é tão importante aqui.
Benício
baixou os olhos.
Nunca
se viu como importante.
Apenas
como alguém tentando existir da forma mais silenciosa possível.
Naquela
noite, em casa, Melina chegou depois de um ensaio.
Entrou
sorrindo, tirou os sapatos, e perguntou:
—
Tudo bem, amor?
Benício
hesitou.
Mas
em vez de responder, foi até o saxofone.
Tocou
uma melodia curta, grave, quase como um lamento.
Melina
entendeu.
Sentou-se
ao lado dele e colocou a mão sobre sua perna.
—
Quando os sons faltam, a gente escuta de outro jeito, sabia?
Ele
não respondeu.
Mas
pela primeira vez em muito tempo, chorou.
Em
silêncio.
E
ali, no abraço dela, percebeu que também era possível ser forte… no meio da
vulnerabilidade.
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em
Mim
Na
tarde seguinte, Benício voltou à sala do projeto com uma ideia que vinha
ensaiando há dias.
Levava
uma partitura incompleta na mochila.
Não
uma de papel. Uma interna. Uma melodia que começava a nascer desde o dia em que
ouviu Luna tocar a flauta pela primeira vez.
Ao
entrar, viu Melina sentada no chão com as crianças.
Sim,
Melina.
Ela
havia pedido para visitar o projeto. Queria conhecer os pequenos músicos.
Como
psicopedagoga e professora, tinha um dom especial de descer ao nível dos olhos
das crianças, sem pressa, sem medo, sem fórmulas prontas.
Seu
cabelo claro e encaracolado estava solto, preso por uma fita azul.
Seus
olhos, sempre atentos, brilhavam com aquela doçura de quem sabe ouvir até o que
não é dito.
As
crianças gravitavam ao redor dela como planetas ao sol.
Davi
mostrava seu carrinho.
Luna
cantarolava uma melodia inventada.
Caio
observava em silêncio, mas com os ombros relaxados, sinal claro de que se
sentia seguro.
—
Você chegou, disse Melina, sorrindo para Benício, sem levantar.
Ele
sinalizou com a cabeça concordando, um pouco desconcertado.
Mesmo
depois de anos juntos, ainda se surpreendia com a leveza com que ela habitava o
mundo.
Ela
levantou-se devagar, se aproximou e disse em voz baixa, só para ele:
—
Você não percebe, mas está ensinando muito mais do que música.
Benício
baixou os olhos.
—
Eu só mostro sons.
Melina
sorriu, tocando levemente sua mão.
—
Mas os sons mais importantes são os que você deixou sair de dentro de si. E
eles moram em você há muito tempo.
A
atividade começou.
Benício
propôs algo diferente: que cada criança escolhesse um som que representasse
“como se sente hoje”.
Luna
escolheu o barulho da chuva.
Caio,
o tic-tac de um relógio.
Davi
apontou para o gravador do trem.
Benício
pensou por um instante.
E
então tocou uma sequência curta no saxofone. Três notas lentas, graves, e uma
quarta nota suspensa no ar, que parecia não querer acabar.
Melina
o olhou como quem reconhece o gesto de alguém se despindo emocionalmente.
Ela
sabia: aquela era a voz que mora nele, e que ele só agora começava a libertar.
Depois
da aula, sentaram-se os dois na escadaria do pátio, lado a lado.
As
crianças já haviam ido embora. O sol caía lento atrás das árvores.
—
Lembra quando nos conhecemos? ela perguntou.
Benício
sorriu.
—
Lembro do que senti. Mas não do que falei.
—
Você não falou. Você tocou.
—
E você entendeu.
—
Porque eu aprendi a escutar com o coração. Igual estou vendo as crianças
fazerem agora… por sua causa.
Silêncio.
Mas
era um silêncio confortável, como um cobertor leve sobre o peito.
Melina
encostou a cabeça em seu ombro.
—
Talvez esteja na hora de você falar com palavras também, Benício. Não precisa
esconder mais.
—
Falar sobre… mim?
Ela
sinalizou com a cabeça concordando.
—
Sobre quem você é. Sobre ser autista. Sobre tudo isso que você achava que te
separava das pessoas… mas que hoje te aproxima delas.
Benício
ficou em silêncio por mais um tempo.
—
Eu não sei se consigo.
—
Consegue sim. Mas comece devagar. Talvez… com uma música?
Ele
olhou para ela, e sorriu.
—
Então vou compor. Para mim. Para você. Para elas.
Uma
música chamada “A Voz Que Mora em Mim”.
Capítulo 7 – A Música Que Nos
Une
A
ideia nasceu numa conversa casual no corredor.
Irene,
animada com a evolução das crianças, sugeriu:
—
E se organizássemos uma apresentação de encerramento do projeto? Algo simples…
musical, simbólico, com os pais assistindo?
Benício
congelou por dentro.
Público.
Luzes. Pessoas olhando.
Palmas,
expectativas, falas. Tudo o que sempre evitou.
Mas
ao mesmo tempo… algo dentro dele sussurrou:
“Talvez seja a hora.”
Naquela
noite, contou a ideia a Melina, enquanto ela corrigia relatórios sentada à
mesa.
—
É um recital, disse ele, sem esconder a ansiedade. Mas... e se eu travar?
Melina
fechou o caderno. Aproximou-se.
Seu
rosto estava calmo, seus olhos sempre atentos.
—
Travar não é fracasso, Benício. É só o corpo pedindo cuidado.
—
E se eu não conseguir tocar?
—
Então você fala.
—
E se eu não conseguir falar?
—
Então você sente. E quem estiver ali vai sentir com você.
Ela
acariciou seu braço.
—
Você não precisa provar nada. Mas se quiser se mostrar, agora tem quem escute.
Melina
sabia o que dizia.
Todos
os dias, ela escutava crianças também.
Na
escola pública onde dava aulas, não era apenas professora, era também observadora
de sinais, estava sempre atenta a indicadores que sugerisse dificuldade de
aprendizagem em crianças.
Notava
o menino que balançava demais na cadeira, a menina que repetia frases o tempo
todo, o que tapava os ouvidos quando tocava o sinal.
Ela
observava com amor e ciência.
Registrava
cada padrão, cada silêncio, cada desconforto.
E
com o cuidado de quem conhece o peso das palavras, redigia relatórios para os
pais.
Relatórios
que não diagnosticavam, mas descreviam os caminhos para que médicos e
psicólogos entendessem melhor aquelas almas miúdas, tão cheias de universos
próprios.
—
Eu não olho para corrigir, dizia. Eu olho para entender.
E
tudo que escrevia era com ética, respeito, delicadeza.
Como
quem planta uma semente de escuta num mundo que tem pressa demais.
Benício
sempre admirou isso nela.
—
Você vê o que ninguém vê, dizia ele.
—
Porque um dia eu vi você, ela respondia.
No
dia seguinte, na sala do projeto, ele contou a novidade às crianças:
—
Vamos fazer um concerto. De encerramento. Com pais, professores… e música feita
por vocês.
Luna
vibrou.
Davi
gritou “trem azul!”
Caio
sorriu e apertou o gravador contra o peito.
Mas
foi Benício quem mais se surpreendeu com a própria coragem.
Naquele
mesmo dia, começou a escrever sua primeira música com letra.
Uma
canção chamada “A Música Que Nos Une”.
À
noite, Melina o ajudava a escolher palavras, sem forçar.
—
Coloca o que mora em você. Mesmo que seja estranho.
E
então ele escreveu:
“Sou feito de sons que você não escuta.
Mas, se me ouvir com calma, vai me entender.
Não falo como todos, mas sinto como poucos.
Sou silêncio que canta. Sou voz por nascer.”
E
pela primeira vez, Benício sentiu que ser autista não era o fim de nada. Era o
começo de uma forma única de existir.
Capítulo 8 – O Concerto dos
Invisíveis
Era
uma tarde de primavera.
O
auditório da repartição fora improvisado com cadeiras coloridas, flores de
papel, cartazes desenhados pelas próprias crianças e instrumentos espalhados
como brinquedos sagrados.
No
fundo do palco, uma faixa bordada com delicadeza por Melina dizia:
“Todo som é um mundo. E todo mundo merece ser ouvido.”
Os
pais chegaram aos poucos, tímidos, curiosos. Alguns levavam flores. Outros
carregavam celulares ansiosos para registrar o momento. Havia ali uma mistura
de expectativa e ternura no ar, como se todos soubessem que presenciariam algo
maior do que música.
Benício
vestia camisa branca e calça escura. O saxofone reluzia nas mãos, mas sua
respiração ainda era curta.
Melina
se aproximou.
Estava
linda, com cabelos alisados e soltos, um vestido azul-claro e um brilho sereno
nos olhos.
—
Pronto? ela perguntou, já sabendo a resposta.
Benício
não respondeu. Apenas sinalizou com a cabeça concordando.
Sabia
que não se está “pronto” para esse tipo de coisa. Apenas se está presente.
A
apresentação começou com Luna, que tocou sua flautinha de brinquedo.
Depois
Davi, que mostrou ao público o som do trem no gravador e sorriu como quem
acabava de inaugurar uma estação.
Caio
usou um teclado infantil para tocar sons graves, dizendo que representava “o
tempo passando devagar”.
Cada
criança teve seu momento.
Nenhuma
foi interrompida. Nenhuma foi corrigida.
Elas
foram sentidas.
E
então, era a vez de Benício.
Subiu
ao palco, respirando fundo.
A
luz não era forte. Mas seus olhos ainda se abaixavam.
Mesmo
assim, com Melina sentada na primeira fileira, ele encontrou forças.
Ajeitou
o microfone, limpou a garganta, segurou o saxofone com as duas mãos.
Mas,
antes de tocar, falou.
A
voz saiu baixa, mas firme.
—
Boa tarde…
Eu
sou Benício. Sou músico. Servidor público. Casado com uma mulher maravilhosa
que está ali, apontou para Melina, que sorriu e quase chorou.
Sou
alguém que ama o silêncio, porque no silêncio eu escuto melhor.
Pausa.
—
Também sou autista.
Fui
diagnosticado depois dos 40 anos. Passei a vida achando que era apenas
“estranho”, “diferente”, “esquisito demais para o mundo”.
Mas
hoje… vendo essas crianças, eu entendo que não sou um erro de fabricação.
Sou
só... uma forma diferente de música.
O
público silenciou. Alguns rostos se emocionaram. Um pai chorava discretamente.
—
O que vocês viram aqui hoje não foi um show. Foi um retrato.
Do
que acontece quando escutamos com o coração, e não com os rótulos.
Pausa
final.
—
Essa música se chama "A Voz Que Mora em Mim". E agora… ela vai
morar com vocês também.
Então
Benício tocou.
Primeiro
só. Depois as crianças o acompanharam com instrumentos simples.
Melina
cantava baixinho, acompanhando cada nota como quem sopra o vento nas velas de
um barco.
Não
havia perfeição. Mas havia verdade.
E
no fim, ninguém aplaudiu de imediato.
Porque
o silêncio que veio logo após foi mais poderoso que qualquer palma.
Era
um silêncio que escutava.
Um
silêncio que abraçava.
Na
saída, os pais vinham um a um agradecer.
—
Meu filho nunca sorriu tanto…
—
Eu também acho que meu menino pode ser autista. Você me deu coragem pra
procurar ajuda.
—
Obrigado por falar. E por tocar. E por ser você.
Benício
sorria, tímido, sem saber o que dizer.
Melina
se aproximou, sussurrando em seu ouvido:
—
Você tocou muito além da música hoje.
Tocou
a parte invisível das pessoas.
Capítulo 9 – Partituras para o
Futuro
Era
manhã de domingo.
Benício
estava na varanda de casa, cercado por cadernos, folhas soltas e o velho
saxofone repousando ao lado, como um cão fiel que já não precisava latir para
ser ouvido.
O
concerto havia sido três semanas atrás.
Mas
ainda morava nele, como uma música que a gente não esquece.
Desde
então, a vida ganhou novos tons.
O
projeto musical foi elogiado pela chefia.
Os
pais solicitaram continuidade.
A
Secretaria da Educação enviou um ofício elogiando a ação.
E
uma escola pública da zona leste ligou perguntando:
“O professor do sax poderia vir contar como é ser autista?”
Benício
quase recusou.
Mas
Melina, com sua voz de mel e firmeza de rocha, disse:
—
Se você contar, alguém vai se reconhecer.
E
se alguém se reconhecer, não vai mais se sentir sozinho.
Ele
entendeu.
Melina
também estava escrevendo.
Relatórios,
como sempre, mas agora também escrevia cartas aos pais, explicando com palavras
doces o que via nas crianças.
“Seu filho não é atrasado. Ele é diferente. E essa
diferença merece ser compreendida, não corrigida.”
Era
a mesma escuta que ela teve com Benício.
Agora
multiplicada em dezenas de pequenos corações que caminhavam pelo corredor da
escola com fones no ouvido, ouvidos tapados ou olhares para o teto — cada um
com seu universo próprio.
Ela
os amava como quem reconhece seus próprios fragmentos em cada um deles.
Benício
também começou a escrever.
No
começo, em post-its.
Depois,
num caderno velho com a capa escrita: “Vozes que ninguém ouve”.
Escrevia
sobre sua infância. Sobre o dia em que ouviu Melina pela primeira vez. Sobre o
menino que balançava a cabeça e se escondia debaixo da mesa. Sobre o trem azul.
Sobre o som da flauta desafinada de Luna. Sobre o recital que virou revelação.
Escrevia
com pausas. Mas escrevia.
—
Isso é um livro, disse Melina.
—
É só um caderno, respondeu ele.
—
Todo livro começa assim.
Naquela
manhã de domingo, ele finalizou uma das páginas com a seguinte frase:
“Eu sou feito de silêncio.
Mas hoje sei que até o silêncio tem ritmo.
E se escutarem com cuidado, vão me ouvir também.”
Fechou
o caderno, respirou fundo, e pegou o saxofone.
Tocou
uma nota longa, cheia de ar e sentimento.
Não
era mais um som isolado.
Era
o começo de uma nova melodia.
Lá
dentro, Melina preparava café, sorrindo.
E
no quintal, os passarinhos se aproximavam…
…como
se quisessem escutar.
Pensamento
Nem
todo som é barulho. Nem todo silêncio é vazio.
Benício
me ensinou isso.
Ele
não é um herói. Nem um exemplo. Nem um símbolo.
É
apenas um homem tentando existir com dignidade num mundo que corre demais… e
escuta de menos.
Ele
é como eu. Como muitos de nós.
Autistas
que cresceram calados, interpretados errado, rotulados antes de serem
compreendidos.
Gente
que não olha nos olhos por medo de ser engolida por eles.
Gente
que fala pouco, mas sente muito.
Gente
que se esconde… até encontrar alguém que não precise forçar a porta para
entrar.
Benício
encontrou Melina.
Encontrou
crianças como ele.
Encontrou
coragem onde antes só havia rotina.
E
encontrou algo ainda mais precioso: a própria voz.
E
talvez essa seja a verdadeira vitória de quem vive no espectro:
não
virar outra pessoa… mas virar quem se é, sem medo.
Essa
história não termina aqui. Porque a vida de gente autista não tem “fim de
temporada”.
Tem
pausa. Tem recomeço. Tem dias bons e dias em que a luz não acende por dentro.
Mas
agora, sabemos que há música até no silêncio.
E
que mesmo as vozes caladas… um dia podem ser ouvidas.
Benício
é ficção.
Mas
o que ele carrega… sou eu.
E
pode ser você também.
Porque,
no fundo, todos nós estamos procurando uma coisa só:
Um
lugar onde possamos existir sem precisar pedir desculpas por sermos quem somos.
E
se esse lugar ainda não existe…
…então
vamos criá-lo.
Com
música.
Com
respeito.
Com
escuta.
E
com amor, mesmo que em silêncio.
*História fictícia baseado na história de Vilmar.
____
Autor:
Sou Vilmar Francisco de Oliveira. Servidor público na Prefeitura de Londrina desde 2012, atuo com dedicação silenciosa e responsabilidade cotidiana. Sou bacharel em Ciências Sociais (UEL) e tenho especializações em áreas como Gestão Hospitalar, Direito Administrativo, Sociologia e Administração Pública.
Carrego comigo o autismo como parte da minha identidade, não como limite, mas como lente única para sentir e transformar o mundo.
Também sou músico instrumentista, autodidata, e escrevo porque as palavras me ajudam a traduzir o que muitos não veem: os sentidos profundos de um mundo atípico.
Estar em formação constante não é apenas sobre cursos, mas sobre aprender a existir com mais verdade, escuta e afeto.
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