O mundo de Benício era feito de repetições.
Caminhos repetidos. Horários fixos. Sons conhecidos.
Era assim que ele se sentia seguro. Era assim que
funcionava.
Mas agora, com o projeto musical acontecendo três vezes por
semana, algo havia mudado na simetria dos seus dias. As crianças haviam entrado
como notas novas em sua partitura. E, mesmo descompassadas, elas começavam a
tocar algo dentro dele.
Na segunda aula, Caio, o menino que girava a tampa da
garrafa, sorriu quando Benício tocou um trecho de “Asa Branca” no
saxofone.
Na terceira, Luna tirou os fones de ouvido por vontade
própria.
Na quarta, Benício percebeu que havia decorado o nome de
todos.
Na quinta, ele chegou sorrindo, mesmo sem perceber.
Entre uma nota e outra, entre um silêncio e um olhar vago de
alguma criança, Benício se via em espelhos quebrados.
Memória:
Ele tinha oito anos quando começou a andar em círculos pela
casa.
A mãe dizia que era “coisa de criança estranha”.
Na escola, os professores pediam para ele “parar de viajar e
prestar atenção”.
Mas ele estava prestando atenção, só não naquilo que os
outros queriam.
O barulho do ventilador.
O ranger da porta.
O som das palavras que vinham atrasadas na cabeça.
A música que fazia com os dedos sobre a mesa.
Tudo isso era real. Mais real do que as perguntas da
professora ou o recreio barulhento.
Na adolescência, tentou se encaixar.
Tentou sorrir na hora certa. Falar de futebol. Rir de piadas
que não entendia.
Mas tudo soava falso. Forçado. Esforçado demais.
Até que desistiu.
Não do mundo, mas da ideia de que precisava pertencer a ele
como os outros pertenciam.
E então, aos 17 anos, achou um saxofone velho no depósito da
escola.
Era como se alguém tivesse deixado uma chave ali, esperando
por ele.
Aprendeu sozinho. Sem partituras. Só ouvindo.
E, pela primeira vez, as palavras que ele nunca disse saíram
em forma de som.
Presente:
De volta ao presente, na sala do projeto, Benício viu as
crianças explorando instrumentos de percussão.
Davi batia o tambor com o mesmo padrão, sem variações.
— Está tocando como um trem, disse Benício.
Davi sorriu.
— Trem azul — completou, com os olhos brilhando.
Benício não esperava aquilo. O menino falava pouco.
Mas ali, no ritmo, a comunicação havia acontecido.
— Você gosta de trens? Ele perguntou.
Davi sinalizou com a cabeça, concordando.
Benício lembrou que, na infância, gravava sons de trens em
fita cassete.
Às vezes, colocava para tocar durante a madrugada, só para
dormir em paz.
Era como se o som certo organizasse o mundo por dentro.
E ele queria que aquelas crianças tivessem essa chance
também.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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