A aula começou diferente naquela tarde.
Luna, que costumava ser a mais dispersa, aproximou-se da
mesa de instrumentos e pegou uma flautinha de brinquedo.
Assoprou um som agudo, desafinado, mas insistiu.
E então fez de novo. E outra vez.
Até que um som doce surgiu, inesperado, como se ela tivesse
encontrado a frequência certa da própria alma.
Benício parou o que fazia.
O tempo ficou suspenso por um instante.
Naquele sopro hesitante e cheio de verdade, algo dentro dele
vibrou, um acorde esquecido, guardado em alguma parte silenciosa de sua
história.
Foi então que ele lembrou de Melina.
Memória:
Era uma noite quente de verão, sete anos atrás.
Benício havia sido convidado para tocar saxofone num evento
cultural do bairro.
Não era comum aceitar convites, mas naquele dia algo o
impulsionou.
Estava no palco lateral, afinando o instrumento, quando
ouviu aquela voz.
Uma mulher cantava “Wave”, de Tom Jobim.
Mas não era só a música… era o modo como ela cantava.
Cada nota era pura, cheia de sentimento, como se a própria
canção estivesse respirando.
Benício paralisou.
Não conseguia tirar os olhos dela: Melina Silva. Branca de
traços indígenas, cabelos claros e encaracolados, preso com uma flor vermelha, e
olhar sereno.
Mas o que o prendeu de verdade foi a voz. Aquele som…
Era como se alguém tivesse encontrado a exata vibração do
seu coração.
Depois da apresentação, ele quis conhecê-la.
Mas não conseguia falar.
As palavras travaram na garganta.
Seu corpo enrijeceu. As mãos suavam.
Não sabia como dizer nada: apenas o quanto queria dizer.
Melina, com sua sensibilidade natural, percebeu.
Naquele dia, ele apenas a observou de longe.
Mas no dia seguinte, ela o procurou no Instagram do evento.
Mandou uma mensagem simples:
“Seu sax me tocou. Tocaremos juntos de novo algum dia?”
Benício levou uma hora para responder.
Apagava e reescrevia, tentava parecer natural, mas tudo era
esforço.
Finalmente digitou:
“Sua voz é de anjo. Eu só sei conversar com sons. Mas,
se quiser, podemos tentar por aqui.”
E foi assim que começaram.
Mensagens curtas.
Emojis, áudios curtos, trechos de música.
Ela entendeu seus silêncios. Ele respeitou seu jeito doce e
leve.
Primeiro, amigos. Depois, confidentes.
Até que, num ensaio improvisado na praça, ela cantou olhando
nos olhos dele…
…e ele tocou como se nunca mais fosse parar.
O beijo aconteceu naturalmente. Como se já estivesse
ensaiado no ar desde o primeiro acorde.
Meses depois estavam namorando.
E no ano seguinte, casados, com direito a entrada da noiva
cantando e o noivo solando “Eu sei que vou te amar”.
Presente:
Luna assoprou a flauta outra vez.
Benício se aproximou devagar.
Sentou ao lado dela, pegou o saxofone e improvisou uma
melodia suave, acompanhando o ritmo da menina.
Foi como um dueto silencioso entre dois mundos.
Ela olhava para o chão, mas sorria. Ele não dizia nada, mas
estava inteiramente presente.
Naquela tarde, Benício não ensinou música.
Apenas compartilhou sentimento.
Na saída, Irene comentou:
— Luna parece outra criança hoje. Você viu como ela te
esperava?
Benício sinalizou com a cabeça, concordando, olhando para o
céu pela primeira vez em muito tempo.
— Acho que ela ouviu... o que nem eu sabia que estava
tocando.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis
Capítulo 9 – Partituras para o Futuro
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