Capítulo 4 – A Flauta de Luna

A aula começou diferente naquela tarde.

Luna, que costumava ser a mais dispersa, aproximou-se da mesa de instrumentos e pegou uma flautinha de brinquedo.

Assoprou um som agudo, desafinado, mas insistiu.

E então fez de novo. E outra vez.

Até que um som doce surgiu, inesperado, como se ela tivesse encontrado a frequência certa da própria alma.

Benício parou o que fazia.

O tempo ficou suspenso por um instante.

Naquele sopro hesitante e cheio de verdade, algo dentro dele vibrou, um acorde esquecido, guardado em alguma parte silenciosa de sua história.

Foi então que ele lembrou de Melina.

 

Memória:

 

Era uma noite quente de verão, sete anos atrás.

Benício havia sido convidado para tocar saxofone num evento cultural do bairro.

Não era comum aceitar convites, mas naquele dia algo o impulsionou.

Estava no palco lateral, afinando o instrumento, quando ouviu aquela voz.

Uma mulher cantava “Wave”, de Tom Jobim.

Mas não era só a música… era o modo como ela cantava.

Cada nota era pura, cheia de sentimento, como se a própria canção estivesse respirando.

Benício paralisou.

Não conseguia tirar os olhos dela: Melina Silva. Branca de traços indígenas, cabelos claros e encaracolados, preso com uma flor vermelha, e olhar sereno.

Mas o que o prendeu de verdade foi a voz. Aquele som…

Era como se alguém tivesse encontrado a exata vibração do seu coração.

Depois da apresentação, ele quis conhecê-la.

Mas não conseguia falar.

As palavras travaram na garganta.

Seu corpo enrijeceu. As mãos suavam.

Não sabia como dizer nada: apenas o quanto queria dizer.

Melina, com sua sensibilidade natural, percebeu.

Naquele dia, ele apenas a observou de longe.

Mas no dia seguinte, ela o procurou no Instagram do evento.

Mandou uma mensagem simples:

“Seu sax me tocou. Tocaremos juntos de novo algum dia?”

Benício levou uma hora para responder.

Apagava e reescrevia, tentava parecer natural, mas tudo era esforço.

Finalmente digitou:

“Sua voz é de anjo. Eu só sei conversar com sons. Mas, se quiser, podemos tentar por aqui.”

E foi assim que começaram.

Mensagens curtas.

Emojis, áudios curtos, trechos de música.

Ela entendeu seus silêncios. Ele respeitou seu jeito doce e leve.

Primeiro, amigos. Depois, confidentes.

Até que, num ensaio improvisado na praça, ela cantou olhando nos olhos dele…

…e ele tocou como se nunca mais fosse parar.

O beijo aconteceu naturalmente. Como se já estivesse ensaiado no ar desde o primeiro acorde.

Meses depois estavam namorando.

E no ano seguinte, casados, com direito a entrada da noiva cantando e o noivo solando “Eu sei que vou te amar”.

 

Presente:

 

Luna assoprou a flauta outra vez.

Benício se aproximou devagar.

Sentou ao lado dela, pegou o saxofone e improvisou uma melodia suave, acompanhando o ritmo da menina.

Foi como um dueto silencioso entre dois mundos.

Ela olhava para o chão, mas sorria. Ele não dizia nada, mas estava inteiramente presente.

Naquela tarde, Benício não ensinou música.

Apenas compartilhou sentimento.

Na saída, Irene comentou:

— Luna parece outra criança hoje. Você viu como ela te esperava?

Benício sinalizou com a cabeça, concordando, olhando para o céu pela primeira vez em muito tempo.

— Acho que ela ouviu... o que nem eu sabia que estava tocando.


Sumário:

Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza

Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio

Capítulo 3 – O Ritmo dos Dias

Capítulo 4 – A Flauta de Luna

Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam

Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim

Capítulo 7 – A Música Que Nos Une

Capítulo 8 – O Concerto dos Invisíveis

Capítulo 9 – Partituras para o Futuro




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