A quinta-feira amanheceu cinzenta.
O céu carregava nuvens densas como se o mundo estivesse por
dentro de uma dor.
Benício acordou com um peso no peito.
Não havia acontecido nada concreto, mas o corpo sabia.
Era como uma afinação fora do tom, um ruído abafado, um
“quase” que ele não conseguia identificar.
Tomou café em silêncio. Olhou o saxofone no canto da sala,
mas não o tocou.
Sentia como se o som tivesse desaparecido de dentro.
Na repartição, tudo estava igual, mas ele não estava.
A sala do projeto estava cheia quando ele chegou.
As crianças espalhavam os instrumentos, Irene arrumava as
cadeiras, mas havia um ruído estranho no ar.
Davi, o menino do trem, estava irritado.
Girava o carrinho com força, batia no chão, murmurava coisas
que ninguém entendia.
— Ele está em crise sensorial — disse Irene, em voz baixa.
Hoje teve mudança de horário na escola, e ele se desorganizou.
Benício paralisou por um segundo.
Não sabia o que fazer.
Lembrou-se de si mesmo aos nove anos, trancado no banheiro
da escola por não suportar o som da sirene.
Lembrou-se de que certa vez gritou com sua mãe só porque
ela mudou o lugar dos pratos.
Lembrou-se da explosão verbal no trabalho quando alguém
desligou a luz sem avisar.
“Ele tem explosões. Mas não é grosseria. É defesa.”
E agora, fazia sentido ao vivo, diante de Davi.
Benício se ajoelhou devagar, afastou os outros instrumentos
e sentou-se a um metro de distância do menino.
Não disse nada.
Não se aproximou.
Apenas tirou da mochila o gravador antigo que levava
consigo, um relicário de sons, e deu play.
Era o som de um trem partindo lentamente.
Chapa… chapa… chapa…
Davi parou.
O carrinho caiu da mão.
Ele olhou para o gravador.
Os olhos brilharam de novo.
— Trem azul, sussurrou.
Benício sinalizou com a cabeça, concordando, com os olhos
marejados.
Não era só Davi que estava em crise. Ele também estava.
Mas agora eles se entendiam no mesmo idioma.
Mais tarde, Irene o chamou no corredor.
— Você salvou o dia.
— Não salvei nada, respondeu. Só lembrei como é quando tudo
dentro da gente sai do controle.
Ela respirou fundo.
— É por isso que você é tão importante aqui.
Benício baixou os olhos.
Nunca se viu como importante.
Apenas como alguém tentando existir da forma mais silenciosa
possível.
Naquela noite, em casa, Melina chegou depois de um ensaio.
Entrou sorrindo, tirou os sapatos e perguntou:
— Tudo bem, amor?
Benício hesitou.
Mas, em vez de responder, foi até o saxofone.
Tocou uma melodia curta, grave, quase como um lamento.
Melina entendeu.
Sentou-se ao lado dele e colocou a mão sobre sua perna.
— Quando os sons faltam, a gente escuta de outro jeito,
sabia?
Ele não respondeu.
Mas, pela primeira vez em muito tempo, chorou.
Em silêncio.
Sumário:
Capítulo 1 – Segunda-feira é Cinza
Capítulo 2 – As Crianças do Silêncio
Capítulo 5 – Quando os Sons Faltam
Capítulo 6 – A Voz Que Mora em Mim
Capítulo 7 – A Música Que Nos Une
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