Quando o perigo não tem nome

Minhas lembranças autistas da infância

Muitas pessoas ainda não entendem que o autismo afeta não só a comunicação ou o comportamento, mas também a forma como percebemos o mundo. Inclusive o perigo.

Na infância, eu vivia imerso num universo muito meu, silencioso e intenso. O que era arriscado para os outros, para mim era apenas parte da paisagem. Muitas mães de crianças autistas desenvolvem um instinto de proteção ainda mais forte porque percebem, desde cedo, que seus filhos não reagem ao perigo como os demais.

Comigo não foi diferente.

Antes mesmo dos cinco anos, vivi situações que hoje poderiam ser chamadas de acidentes graves, mas que, na época, eram apenas “brincadeiras” na minha forma autista de experimentar o mundo.

Lembro de uma cena que ficou marcada na memória da minha mãe. Meu pai, que era policial militar, trouxe um cachorro de grande porte, treinado. Um cão respeitado, daqueles que só de olhar já impõem medo. Mas não pra mim. Pra mim, aquele cachorro parecia um cavalo baixinho. E eu, com minha mente de criança curiosa, subi em cima dele como se estivesse numa aventura. Brincava ali, me equilibrando, até cair de cabeça no chão.

Meus pais só perceberam o que estava acontecendo quando ouviram o barulho da queda. E mesmo assim, eu não chorava. Eu não entendia o perigo. Só fiquei assustado com os gritos depois.

Em outro momento, fui picado por uma aranha caranguejeira. Estava tentando brincar com ela. Eu observava seus movimentos, achava interessante o jeito que ela caminhava. Não tive medo. Toquei nela como quem toca um brinquedo vivo. Ela me picou. Minha mãe correu desesperada ao hospital. Ela me salvou. Mais uma vez, meu corpo reagia, mas minha mente não entendia o que estava acontecendo. A cena só parecia assustadora para quem via de fora.

Hoje, adulto autista, com diagnóstico de síndrome de Asperger, consigo olhar para essas experiências e entender o que estava acontecendo comigo naquela época. O senso de perigo no autismo é diferente. Não é que a gente queira se machucar ou que sejamos inconsequentes. É que nosso cérebro interpreta os estímulos de outra maneira.

Como já explicou Temple Grandin, uma das autoras autistas que mais me inspira, "pessoas autistas precisam de ensino direto sobre o que é seguro e o que não é, porque os sinais sociais nem sempre são percebidos automaticamente". E é isso mesmo. Eu precisava que alguém me dissesse, com clareza: "isso machuca", "isso não é seguro". E não bastava só falar, eu precisava compreender com o corpo, com os sentidos, com imagens.

Outra autora autista, Donna Williams, também descreve algo parecido em sua biografia. Ela diz que o medo vinha depois, nunca antes. E comigo era exatamente assim. Só depois que algo acontecia, é que eu talvez entendesse que aquilo era "ruim". Antes disso, era só uma cena nova no meu mundo.

Essa dificuldade de reconhecer o perigo é algo comum em muitas crianças autistas. E não tem a ver com má criação, nem com falta de disciplina. É uma característica do autismo, que envolve os sentidos, a percepção, e a forma de viver o corpo no espaço.

Quem convive com autistas, especialmente crianças, precisa entender isso. Não é birra. Não é desobediência. É uma forma diferente de estar no mundo.

E, por isso, mães, pais e responsáveis precisam de apoio e orientação. Minha mãe aprendeu tudo sozinha, na base da tentativa e erro. Na base da dor e do susto. Hoje, com mais acesso à informação, com autores autistas compartilhando suas experiências e com profissionais dispostos a ouvir, é possível entender melhor o que se passa no mundo sensorial de uma criança no espectro.

No meu caso, sobrevivi graças ao amor da minha mãe, à paciência do tempo e a um corpo que resistiu mesmo quando a mente não percebia o risco. E hoje posso contar essa história. Não para gerar medo, mas para gerar compreensão.

Porque vivências reais de autistas adultos também são fontes de conhecimento. Porque nossa memória guarda pistas do que as crianças de hoje ainda não conseguem explicar com palavras. E porque cada história importa, especialmente quando o assunto é viver, com todas as nossas diferenças, neste mundo que ainda está aprendendo a acolher.

Referências:

GRANDIN, Temple; SCARIANO, Margaret M. Uma menina estranha: a autobiografia de Temple Grandin. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SINCLAIR, Jim. Don’t mourn for us. 1993. Disponível em: https://www.autreat.com/dont_mourn.html. Acesso em: 27 jul. 2025.

WILLIAMS, Donna. Nobody Nowhere: The Extraordinary Autobiography of an Autistic. London: Jessica Kingsley Publishers, 1992.



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Por Vilmar Francisco de Oliveira

acidente doméstico
Quando o perigo não tem nome

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